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Opinião. Porque adoramos odiar ‘Saltburn’, o filme mais Instagramável do momento

Só se fala em ‘Saltburn’, o filme mais divisivo da temporada. Alguns amam pela cinematografia e pelas imagens de opulência enquanto outros odeiam pela narrativa fraca e previsível.

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05 de janeiro de 2024 às 16:55 Clara Drummond

Nos últimos anos, temos visto um conjunto muito bem-sucedido de narrativas que repetem o slogan rousseauniano "eat the rich", como Parasitas (2019), de Bong Joon Ho, Triângulo da Tristeza (2022), de Ruben Östlund, O Menu (2022), de Mark Mylod, e as séries The White Lotus e Succession, ambas da HBO. Pelo trailer e sinopse, tudo indicava que o último filme a juntar-se a esta lista seria Saltburn, escrito e realizado por Emerald Fennell, autora de Uma Miúda com Potencial (2020). Afinal, é a história de um menino pobre que é convidado para passar um verão com um grupo de aristocratas alienados e cruéis. O resultado, no entanto, é ao mesmo tempo exuberante e superficial, não muito diferente de um anúncio de um perfume.

É difícil escrever sobre Saltburn sem denunciar aquilo que é o seu aspecto mais fraco, a sua falha fatal: a resolução. Logo, preparem-se para os spoilers ou voltem a este texto mais tarde. A primeira metade do filme lembra um livro da Agatha Christie. Nós sabemos que algo terrível irá acontecer naquela linda casa, possivelmente um assassinato. De cara, é evidente que o principal suspeito é Oliver Quick. É ele o outsider com segundas intenções, que manipula com destreza todos os habitantes da mansão. Ainda assim, queremos saber mais. Nós temos o possível culpado, mas não temos o motivo nem sabemos como será o plano. Mas, no lugar de uma surpresa, temos um relato em voice-over redundante e insatisfatório.

A grande graça de uma história de mistério é olhar para trás e pensar com admiração: estava tudo ali, à mostra, e ainda assim passou despercebido, como é que eu não vi?! É preciso fazer sentido e surpreender. Aqui, Emerald Fennell optou por um atalho preguiçoso. A montagem visual que nos mostra como o vilão conseguiu enganar todos não explica nada. É sempre frustrante quando as atitudes dos personagens não se justificam através das suas personalidades, e sim porque o enredo pede. Os personagens perdem a sua verosimilhança ao comportarem-se mais como marionetas do que como pessoas reais. Saltburn consegue a façanha de fazer com que todo um grupo de personalidades diferentes se comportem de forma que justifique o enredo… que tampouco faz sentido por si só.

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(Por exemplo: Oliver Quick não precisaria apenas de ser brilhante, como também clarividente, para adivinhar que uma bicicleta partida iria ser o primeiro passo de sua grande conquista. Tampouco um mestre na enganação iria cometer um erro crasso como largar o telemóvel por tempo suficiente para que ocorra uma extensa conversa entre a sua mãe e Felix. E por aí vai…)

Saltburn apresenta a família Catton como um grupo de pessoas absurdamente ingénuas, quase burras. Há características que são exageradas de propósito ao serviço da sátira e do humor – e são esses os melhores momentos do filme. Não há problema na quebra de verosimilhança se o resultado é satisfatório. É por isso que não exigimos grande realismo na comédia e no humor, uma vez que o objetivo principal é o riso, não a realidade. Mas a ingenuidade da família Catton também é crucial para o sucesso do plano de Oliver Quick. E é aí que deixa de soar como sátira, e sim como atalho.

Foto: DR

Os ultra-ricos, sobretudo aqueles que têm dinheiro e poder há muitas gerações, podem ser mesmo fora da realidade, mas têm um instinto de autopreservação aguçado, caso contrário não se manteriam nessa posição ao longo de tantas décadas, até mesmo séculos. É impensável que uma família nesses moldes fosse ceder tão facilmente à manipulação de um estranho, sem ao menos fazer uma investigação básica a respeito do sujeito.   

No final, a elite aristocrática é retratada de modo bastante simpático, ao contrário dos filmes mencionados acima. Emerald Fennell faz ela mesma parte desse grupo: é filha de um joalheiro badalado, teve a sua festa de 18 anos retratada em revistas sociais, e tal e qual os seus personagens, estudou em Oxford no início dos anos 2000. Os críticos apontam que esse histórico é responsável pela série de pontos cegos em relação à classe do filme. No entanto, discordo: é comum que os melhores autores de ficção que criticam as classes altas pertençam a essas mesmas classes altas. O background do autor é irrelevante contando que exista curiosidade e capacidade de observação.

Foto: DR

Saltburn não é de todo mau, pelo contrário. A grande sacada do enredo é a revelação no meio do filme sobre a origem de Oliver: ele não é um rapaz pobre com uma família conturbada, e sim membro de uma classe média confortável que viaja todos os anos para a Grécia. Para Oliver, o suficiente não é o suficiente, ele quer tudo. Oliver é encantado por toda aquela estética e exuberância que envolve a família Catton: os lugares, as roupas, as pessoas. Nós partilhamos esse encantamento graças à realização majestosa de Emerald Fennell. A atmosfera de Saltburn – da casa e do filme – é mesmo hipnotizante. Saltburn poderia ser uma crítica não aos ultras-ricos e sim à classe média versada na literatura mais sofisticada, mas mesmo assim que sucumbe ao materialismo vazio dos Catton. Assim, Fennell criaria um efeito verdadeiramente desconfortável: a identificação do espetador com um psicopata como Oliver Quick.

Nesse sentido, Saltburn dialoga com a nossa relação ambivalente com o mundo perfeito do Instagram. Racionalmente, nós sabemos que o mundo mostrado no telemóvel não é real, mas, ainda assim, somos seduzidos. Emerald Fennell diz que Saltburn não é um filme focado em classe, género e etnia, e sim sobre o desejo intenso por um determinado tipo de vida. Talvez por isso seja um filme focado sobretudo em "vibes", quase como se fosse um videoclipe. A banda sonora é repleta de  hits indie-pop dos anos 2000: Arcade Fire, Ladytron, Bloc Party, The Killers, MGMT. Este último é responsável por uma das cenas mais emblemáticas, em que os personagens jogam ténis vestidos em black tie enquanto bebem champagne ao som da mensagem pouco sutil de Time to Pretend. Ou seja, um resumo perfeito do filme.

Foto: DR
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